sábado, 29 de dezembro de 2012

Pensamento

Escrever é uma brincadeira séria,
constutuinte e experimental como o Brincar da criança.

Um texto/não-poema, reescrito e reescrito no laboratório que é o blog



Quando palavras chegam e não as compreendo,
perecem enxames de libélulas, borboletas, grilos, traças, corvos em manadas azuis  e desenfreadas.

Escuto sons de uma língua estrangeira,
orgãos e catedrais de um passado ancestral, 
atemporais, no entanto, pois vivos e atuais.

Escutando minha alma absoluta,
letras descansam meus ombros,
asas quebradiças.

Criando raízes me transformo em pé-de-fruta,
rezo a um deus desconhecido,
e digo, seja o que o deus quiser.

O vento balança meus galhos,
e letras, antes de serem palavras,
recuam assustadas,
não mais  me rodeam em enxames,
não se juntam em sílabas,
nem dançam à luz de meu olhar.

Outras letras no entanto, chegam
se encadeiam e formam palavras inteiras,
coriscos riscando noites de verão,
vagalumes pisca-pisca,
 palavras soltas, antes de formarem frases.

Por que preciso das palavras?
Por que não as deixo em paz?
Ora, me perturbam,
ousam me renovar,
e criam realidades.

Mas aqui, com palavras construí
um excesso de imagens.

menos é mais.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Mensagem para 2013




Queridos blogueiros,

obrigada a todos, obrigada por suas mensagens amigas. Estou lendo Amós Oz, "de amor e trevas". Na página 76 ele diz: "Não precisamos de literatura lamuriante, e já nos cansamos de (...)".
Esta frase bateu forte em mim.
Que tenhamos em 2013 uma arte original e inovadora. E que esta arte nos forneça outras visões de mundo. A dor existe e é parte da vida, mas não façamos de nossa dor  lamentações.
Que possamos usar a alegria e a dor para criar perspectivas, e também para encontrar saídas.
Precisamos de territórios e saídas. Desejo-lhes de coração que encontrem territórios e saídas. Que o "estrangeiro" de cada um de nós se fortaleça, e nos fortaleça. Desejo que cada um de nós possa fazer da própria vida uma obra de arte.
Todo meu carinho!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Mensagem de Natal e Ano Novo









Deixo uma cumbuca de cristal bem límpido com cerejas e romãs à porta de cada blogueiro, amigos queridos de tantos anos. Os blogs estão aqui _ desde 2008? Cerejas e romãs símbolos de criatividade e prosperidade. Em minha cabeça e coração ronda uma música de Natal, que todos vocês sejam abençoados. Será que o tempo realmente, passa mais rápido? Será que a rotação do planeta ganhou velocidade? Acho que deveríamos perguntar à ciência da física, com suas investigações ela abriu e construiu paradigmas. O Pensamento complexo brota bastante da física. E a física (era) uma ciência que se chamava exata... Não Mais? ! Bendita física quântica. Não somos exatos. Somos. cada um de nós, inesperados. Benditos cada um de vocês, cada um de nós. Com amor, Eliane


(A ilustração é a carta "O Mago", do Tarô, desenhada por mim.  Ou seja, não foi copiada de nehum baralho consagrado. Esta carta representa alguém seguindo seu caminho, de posse dos instrumentos aprendidos, ao longo da vida).

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Seus tons eram os neutros,
 se vestia em cores escuras.

A roupa respirava nos armários,
 básica e minimalista,
 se entrava um vestido, saíam dois.
 
O colar de pérolas acrescentava a luz,
 e é claro, as esmeraldas sorridentes de seus olhos.
 
Apaixonada frugal e discreta,
 intensidade presente e contida,
 seu riso franco nunca foi escandaloso.
 
A última vez que a vi tinha os olhos fechados,
 um colar de pérolas,
 na cabeça um lenço colorido,
 e no peito o Espírito Santo de madeira,
 que encontrei para você numa estrada.


sábado, 8 de dezembro de 2012


Tudo do que somos parte
 
Em tempo de telefonia
pessoas são  luzes e pedras incrustadas.

 
Na célula-elevador, ou naquelas das salas-de-espera,
não se escuta Bom dia!
E se alguém diz sonoramente, Bom dia,
o espanto adormecido ensurdece
e emudece o entorno.

 

A fala nesses tempos mora nas gravações mecânicas,
em câmaras ocultas, na televisão,
das quais saem sons e imagens que se refletem no vidro
dos vasos de orquídeas plastificadas,
mudos como pessoas vitrificadas.

E no entanto, somos orgânicos,
sentimentais.

Feitos de células intercomunicáveis,
ansiamos e sofremos de solidão pela ausência
e silêncio do outro humano.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Transcriação poética

Para Haroldo de Campos, poesia não é passivel de tradução, transportar um poema de uma língua para outra, ele chamava de "transcriação poética".
O livro de WISLAWA SZYMBORSKA, (poemas),
Tradução de Regina Przybycien,
Companhia das Letras, Saõ Paulo, 2011,
é um bom exemplo desse conceito de Haroldo de Campos.

A poesia da poeta polonesa é maravilhosa, descobri-a pelos acasos do cotidiano, na livraria do cinema Reserva Cultural, Avenida Paulista, São Paulo. Os caractéres da Língua Polonesa são bem diferentes dos de nosso alfabeto. A visualidade do(s) poema(s) em polonês é uma. A do(s) poema(s) da poeta SZYMBORSKA transportado(s) para o português por Przybycien é uma outra, completamente diferente. A sonoridade então, será inteiramente distinta. Gostaria muito de escutá-lo(s) na língua original. Vemos que um poema é bom, quando dito ou lido numa língua desconhecida para nós, como o polonês é para mim, pela sonoridade do poema.
Neste livro vemos ilustrado o conceito de Haroldo, assim como percebemos, através do estranhamento, que poemas possuem dois signos, o visual e o auditivo. Poemas são ideogramáticos, visuais e sonoros. Vale para a literatura, mas na poesia é mais escancarado. O nome  de WISLAWA SZYMBORSKA pronuncia-se mais ou menos Vissuáva Chembórska. (pag 10).


 

Poema de Wislawa Szymborska

(Tradução de Regina Przybycien)



As três palavras mais estranhas



Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira aílaba já se perde no passado.


Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.


Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum lugar.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

NO TEMPO, ATRÁS DO PENSAMENTO

Quarta feira quando posso, não faço nada, pois é meu dia livre, no consultório. Mas em geral resolvo questões pendentes. Posso ir ao atelier de pintura onde tenho aulas avançadas. Geralmente vou às terças de manhã, mas quarta também tem oficinas. O que quero dizer por aulas avançadas, vamos lá, meus colegas e eu para aprender a pintar e para trabalhar. O ato de pintar, para Kandinski, é da ordem do sagrado, a transcendência na arte. Para Sergio Fingermann também. Sergio nos cobra a transcendência na pintura. Muitas vezes me perco, sofro, me encontro. Hoje já falei com Líria Porto, minha amiga e conterânea, poeta de sete cruzes. E comemoro aqui, fazer parte da agenda de 2013 de "Tribo" com dois poemas, um espaço que cobiçava, e continuarei perseguindo. Importante para mim conhecê-los desde dentro, como uma de suas poetas. Enfim...viva na vida, o que implica frequentar o tempo, como falava Clarice, que apenas podia, segundo ela, compreender o que estava no tempo. Oi Clarice Lispector, cá estou atrás do pensamento, nas sensações, no instante. Bom dia a todos vocês!

sexta-feira, 26 de outubro de 2012


Tecelã

Se tenho dois fios
peço cinco

pra me tecer
e viver

o medo
e as travessias

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

escoadouro

                  de líria porto





o tempo que o tempo tem
andamos mais de três quartos
a idade disparou
eu não tinha tanta pressa
e o prazo que nos resta
eu sei é pouco
então vem
antes que acabe a festa
e deixemos de viver
o que seria
e não foi

* líria porto

(para
Eliane Accioly Fonseca)"


   

 

"

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Imagens dos atravessadores que parecem no livro


 
 
Os atravessadores estão felizes, e se sentem reconhecidos. Sua autora também, embora eles (os atravessadores ) jurem entre si, que não possuem autoria, pois eles mesmos se criam.

Lançamento de Silvana Cappanari, Lucia Fialho Cronemberg e Ana Lucia Catão

"Mediação no Judiciário, desafios e reflexões sobre uma experiência"
Coordenadores: Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe.

Organizadoras: Silvana Cappanari, Lucia Fialho Cronemberg e Ana Lucia Catão foram as organizadoras.

O livro foi lançado ontem, dia 3 de outubro, na Livraria da Vila, na Alameda Lorena. Um bochicho. Preciso contar que "Os atravessadores" entram no livro. Estão na página 89, "Parte  II". Ilustram o espírito da ""segunda parte do livro". E quem sabe, o espírito da tribo que construiu o livro?  Esta tribo diz:

"Nesta segunda parte, a palavra é de profissinais do Judiciário. Os autores destes capítulos apresentarão  suas perspectivas de trabalho em diferentes setores do Fórum. Nossa ideia ao convidá-los a compor este livor foi viabiizar parte da complexidade que comfigura o cotidiano do Fórum em que tem lugar essa experiência de Mediação. Alé, disso, nosso objetivo é abrir espaço de conversa. Cda um deese autores é o elo de interlocução na nossa rede de relações nessa organização. Com a ajuda deles, pudemos icrementar nosso olhar e nossas ações".

Os atravessadores comparecem se apresentando em palavras e ilustrações:

"Os atravessadores são seres vivos que se tecem, fiam e desfiam a si próprios e uns aos outros...seus corpos são feitos de fios afetivos. Eles não andam sozinhos, mas em bando. Esses seres pensam, sentem, constroem mitos e filosofias, são poetas, e têm olhos de recém-nascidos...O mundo que os cerca está pronto" há milênios, mas em cada olhar o mundo se revela". (Eliane Accioly, psicanalista, escritora e artista plástica).

terça-feira, 31 de julho de 2012

Diário de blogueira

Padaria,  programa de paulistano, dos melhores.
Arrastou o marido á padoca vizinha.
Pediu risoto de abobrinha, ele um bauru (confessou que queria todos os sandwiches do cardápio, sendo impossível,  um de cada vez). Foram dois baurus.
Pediram uma garrafa de Chianti.
E água, vida líquida em garrafinhas de plástico.

Jovens, velhos,crianças,
sozinhos, em par, em grupo.

Correu o risco,
e se tornou
um poemeta chulo.



 

sábado, 7 de julho de 2012

Misturebas, e uma blogueira paranoica



          Postagem reescrita:
          Pois é, o tópico que reformulo começava com o tal de "básson de Riggs". Escrevi algo como: "a física quântica é uma benção, e o `básson de Riggs´ é um poema". Sou abismada com os avanços da física quântica.  Mas, se um físico me escutar chamando " física de poema", ou dizendo "a física é uma benção", vai me taxar de maluca e me odiar, certamente, as duas coisas, pois as descobertas da ciência não caem do céu, são arduamente conquistadas. Vejam, descobertas  não são invenções.
          Saber de o "báson de Riggs" foi interessante, mexeu com minha curiosidade e bisbilhotice. Por enquanto tal existência é uma notícia não comprovada. Também não seria um boato, parece, pois existem décadas de pesquisas. Por que misturo aqui o "báson de Riggs" com poética? Queridos blogueiros, porque quero partilhar também pensamentos, inquietações, não "sou sábia", sou aprendiz na vida, de carteirinha. E assim, aqui também é um espaço para dizer "bobagens"! Quem tudo sabe não aprende. O que mais aprendo aqui no blog é conversar. Grande abraço.
         

sexta-feira, 29 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Os esquizofrênicos







Em um banco de jardim, fim de dia, entre pássaros apressados, grilos, cigarras, coaxar de sapos.

Lugar delicioso, ele diz.

Não é o lugar, é o instante, ela responde. Mágico.

A cigarra que vibra até estourar... Ele insiste.

É o instante, só o instante... Fosse o lugar seria uma gaiola, viver é o instante.

O monólogo de cada um lhes rouba a magia do momento, sentimento de doçura insuportável, posto que diáfano.  Suas falas os reasseguram do quê?

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos

Imagem e texto de arquivos pessoais












 

Após milênios de cisões entre diferentes aspectos, indivisíveis, porém, como ciência e arte, sagrado e profano, corpo e mente, eu e não eu, e outros, nós ocidentais, a duras e alegres penas, vimos perseguindo e encontrando instrumentos para lidar com os impasses e ultrapassar dicotomias paralisantes, sem eliminar as contradições.
Entre os cronistas do cotidiano, contemporâneos, encontro mestres em outras maneiras de lidar com acontecimentos, problematizando-os e se preocupando em não banalizar sua complexidade, ao contrário, levando o leitor à percepção de novos e surpreendentes ângulos. Um dos recursos usados é o do autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, dizendo o que pensa, o que sente, como foi afetado pelas circunstâncias, ou seja, recorrendo às referências que brotam de sua experiência e de seu agir no mundo, em outras palavras, deixando a neutralidade, se expondo.
Não apenas a ciência é conceitual, também a arte e a vida. Em nosso cotidiano cada vez que descobrimos jeitos mais enriquecedores, ou sentimos a precisão de problematizar a rede de relações de situações que nos desafiam, em certa medida, criamos conceitos. Um conceito é para ser usado, uma ferramenta do pensamento que sustenta, temporariamente nossas ações no mundo, em qualquer dos campos que agimos. Não nasce para permanecer, mas para ser substituído por outros, podendo ser usado diferentemente em outros contextos. Quando isso ocorre, não é mais aquele conceito original, mas um outro que possa oferecer novos e diferentes recursos. Quando digo usado quero dizer, experimentado, vivido.
Na cultura ocidental (como em qualquer cultura) há saberes supostos para nos orientar (que podem desorientar, completamente!), e para me sentir garantida a eles me agarro. Quando faço isso não posso me apossar das referências, pois, em geral, estas permanecem alheias à minha experiência, não as encarno e por isso, se distanciam de mim como cenouras na frente do burrinho, não me servindo, pois não dariam conta dos desafios do momento. Paradoxalmente tenho as garantias do suposto saber, mas não as referências.
Estou em estado-de-risco quando esqueço o saber apriori, inclusive teorias e/ou conceitos encontrados por mim no passado e que me serviram em outros momentos, mas que talvez, agora não me sirvam. Quando, porém, abandono conhecimentos prévios, outro paradoxo, vou encontrando referências, me inserindo na situação e interagindo com ela. O que ocorre, entretanto, em estado-de-risco as referências vão se fazendo com a experiência e a vivência, e a bússola, assim como a posição da estrelas é criada a cada instante. Ou não. Não há garantias.
Estado-de-risco é um conceito que procuro, na medida do possível, usar (viver) na clínica, na arte e na vida.
Ferreira Gullar diz que é “um contumaz inventor de teorias – algumas até foram levadas à sério como a Teoria do Não-Objeto; outras injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela simples razão de que não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.(...)”. (Folha de São Paulo, E 12, 30 de Janeiro de 2005)
A “teoria do não-objeto”, me parece, surgiu em um encontro entre artistas e amigos, quando os neo-concretos buscavam conceitos que exprimissem aspectos das esculturas (inclassificáveis) de Ligia Clark. Vamos supor que o ambiente em que estavam era descontraído, sem censuras ou julgamentos, viviam um encontro onde, em estado-de-risco, podiam se arriscar. Winnicott chamou de transicional os espaços que não podem ser censurados, para que os paradoxos se preservem; levamos (ou não) para a vida adulta, os espaços transicionais. Nesses espaços estamos em estado-de-risco, e o novo pode (ou não) surgir. Não nos esqueçamos, sem garantias, porém, paradoxalmente, é quando não as temos que se pode criar. E a censura, bem sabemos, costuma estar muito em nós, podemos ser juízes horríveis para nós mesmos.
Os espaços transicionais estão entre alguém e outro alguém, entre o livro e o leitor, entre eu e o mundo, infindáveis entres. Acima mencionei que um dos recursos usados para ultrapassar as dicotomias sem suprimir as contradições, seria o autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, tornando-se não apenas parte dele, mas um de seus elementos constituintes, como um dos caracteres de um ideograma. Outro recurso poderoso seria usar espaços transicionais - como os intervalos entre a arte, a ciência e a vida, por exemplo.
Estado-de-risco é ao mesmo tempo um intervalo, um lugar, um espaço transicional, um estado de percepção e consciência, um conceito e objeto transicional. Ao mesmo tempo singular – pois cada estado-de-risco só poderia ser único, é também absolutamente plural, pelo simples motivo de encontrar-se e se disseminar na vida. Uma das perspectivas de trabalhar nos intervalos seria a inclusão da simultaneidade: muitos aspectos ocorrendo simultaneamente.
Gosto muito quando FG afirma que “uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente)”, pois, nós humanos também somos feitos de monstros, fadas, bruxas, animais fantásticos; mas para mim o surpreendente nessa afirmação de FG é que, quando criamos novas referências, experiencialmente, quando usamos e trans-criamos conceitos, quando freqüentamos o estado de risco, nos sentimos vivos. Se não fizéssemos isso estaríamos submetidos todo o tempo a regras e referências apriori que existiram muito antes de nascermos e existirão (provavelmente) muito depois que nos formos. Assim, o surpreendente é também descobrir que não podemos criar a nós mesmo, nem ao mundo, mas podemos criar parcelas do mundo e parcelas de nós: a micro-política de Deleuze e Guattari.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

A quarta neta


















A quarta neta




Era uma vez a Carolina, uma menina de sete anos.
Xereta.
Perguntadeira.
Desconfiada.
Ciumenta.

Taurina e loira.
Cabeçuda, brava.
Neta de alemães pelo lado paterno.
E pelo materno, mineirinha de seiscentos anos.
Uma mistureba.

Carolina gosta muito da vovó Eliane, mas acha que para a vovó mineira, ela é só a quarta neta, “Que mico ser a quarta neta!”, “Não sou mocinha como a Ana Luiza, nasci depois do Gianluca e do Guilherme, e nem sou a caçula, como a Amanda”, pensa. As coisas que Carolina mais detesta são:

1- Ser a quarta neta, nem a mais velha, nem a caçula.
2- Quando o irmão, o Guilherme, um ano e sete meses mais velho bate nela.
3- E quando o Guilherme a arrasta e puxa pela roupa no corredor da escola, na frente dos colegas! Uma vergonha!

Por conta de uma arrastada Carolina deu um tapa merecido e estalado na cara do Guilherme. O tapa fez plaft, e ficou grudado na bochecha dele, escorrido, um tomate esborrachado. Vovó Eliane não viu Guilherme arrastar a Carolina, só viu o tapa estampar a cara do neto, e desenhar um mapa, ouviu o plaft! E chiou:

_ Não se bate assim no irmão, Carolina!

A menina ficou mais vermelha que o tapa na bochecha do irmão, e sentida com a vovó:

“Ela protege o Guilherme! Gosta mais dele que de mim! Não zangou dele me arrastar.”

Quase chorou, mas no lugar das lágrimas fechou o rosto, que ficou mais redondo. A boca de Carolina se abriu naquele rosto cor de rosa e redondo, e falou para a vovó:

_Você não manda em mim. Só a minha mãe!

Vovó ficou impertinente:

_ Avó também educa, Carolina!

E querendo ser engraçadinha, vovó continuou:

_ E quando a neta vê a vó educar diz: “Obrigada, vovó”.

Carolina sentiu que era um balão e teve medo de estourar e virar pedaços de borracha. Não um balão cheio de gás, um balão cheio de ira por causa da vovó. Até esqueceu o desaforo de ser puxada pelo Guilherme na frente dos colegas. De novo a boca se abre no rosto redondo e diz:

_ Não vou agradecer, vovó Eliane! Sou diferente de toda criança! Não quero mais ir para a casa da vovó.

Mas, Carolina foi para a casa da vovó Eliane. Era sexta feira, o dia de vovó Eliane pegar Carolina e o Guilherme no colégio. Passam pelo Super Mercado e compram salada. Carolina de braços cruzados finge que nem tem avó, mas anda atrás dela, com medo de ficar perdida. Já ouviu contar de criança perdida, e acha uma coisa muito triste. Suspira: “Vida de criança é difícil!” Chegam à casa dos avós. Carolina sente o cheiro de pastel.

Ainda está zangada, mas, o cheirinho de pastel... A menina come um monte de pastel de queijo, os que gosta. Vovó pede para Néia fritar tantos quantos a neta quiser. Para o Guilherme tem pastel de carne. Carolina pensa que inventou gostar de pastel de queijo, porque precisa ser diferente do Guilherme. “Graças a Deus a vovó agrada nós dois”, pensa a pequena mastigando um pastel crocante. Estão na mesa quatro pessoas, dois adultos, vovó e vovô, e duas crianças, Carolina e o Guilherme. A raiva fica amarrada ao pé da mesa. Carolina está feliz de não ter explodido como um balão. Continua inteira. Toma sorvete de sobremesa e considera, “Quem sabe a quarta neta também tem lugar no coração da vovó?”.

Mas, nesse pedaço Carolina fica muito triste, e começa a chorar de soluçar. Vovó Eliane senta a neta no colo e pergunta o que está acontecendo:

_ É por causa da vovó que você chora?

_ Não, vovó, é por causa da mamãe e do papai. Mamãe viaja muito. Está na Venezuela e só volta amanhã. Papai viaja muito, está em Brasília, e volta hoje de noite. Eu fico muito triste e tenho pesadelo.

_ Ah! A vovó entende você porque já fui criança, e também ficava triste quando meus pais saiam de noite e eu ficava em casa. Me lembro até hoje, vejo agora quando você fala dos seus pais, é como eu me sentia.

_ Você quer ficar perto dos seus pais, vovó?

_ Não, meu amor. Agora cresci e tenho uma neta chamada Carolina, estou com ela aqui no meu colo.

_ Vovó, você viu o Guilherme me arrastar no colégio?

_ Não vi. Foi por isso que você deu o tapa nele? Porque ele arrastou você?

_ Foi.

_ Então, peço desculpas. Você me desculpa, Carolina?

_ Desculpo, vovó.

Carolina ainda sentada no colo da vovó. Vovó levanta, de mãos dadas com ela. Vão para o sofá, e quando a quarta neta vê, vovó Eliane está contando uma história:

“Era uma vez a Carolina, uma menina de sete anos:
Xereta.
Perguntadeira.
Desconfiada.
Ciumenta”.

É a história que Carolina acaba de viver. A menina se aconchega na avó e pensa:
“Essa minha avó Eliane! Sei não!!!!!!!!!!!!”

sábado, 26 de maio de 2012

A psicanalista e sua cozinha















A psicanalista e sua cozinha

 Resenha de Eliane Accioly
De "O livro Neurótico de Receitas"
de Ana Cecília Carvalho

“O livro Neurótico de Receitas” de Ana Cecília de Carvalho _ psicanalista, professora, escritora, poeta, oferece receitas, narrações de histórias, dicas que parecem óbvias depois de lidas (escutadas), mas para nós surpreendentes, pois nunca antes pensáramos nelas. Os cinquenta capítulos, associação da autora ao tempo da sessão analítica, trazem “regras de ouro”, tais como a limpeza que uma cozinha precisa _ panelas brilhantes, louça impecável, e mãos recém-lavadas, cada vez que formos preparar um prato; e o mínimo que precisamos ter em nossa cozinha “para salvar nossas vidas”, nos permitindo preparar um prato delicioso ao voltar exaustos de uma viagem. A cozinha precisa de requinte, ela se estende à sala de jantar, a toalha que cobre a mesa deve ser bordada, a louça de qualidade, talheres de prata, cristais raros. O que quer dizer, cercar de amor a quem oferecemos a refeição. A comida deve ser boa e farta, quem alimenta não quer que saiam famintos. Clarice Lispector escreve contos de almoços e jantares, e em “Água Viva” pede à empregada: “Me alimente”. Alimentar é função materna, não importa se quem alimenta é mulher ou homem.

O livro mostra também que a cozinha é parte fundamental da loca onde imaginário e simbólico não se desvinculam: o que chamamos de língua materna _ matriz da poesia e de todas as artes. Língua materna quer dizer etnia, ou seja, a importância em cada um de nós de nossa ascendência e tradições, e do lugar de onde viemos.

Mineira, Ana Cecília vive meio ano em Belo Horizonte, e a outra metade em Austin, nos Estados Unidos. Guiados por ela passeamos pela cozinha Kasher de sua avó, Assistimos ao pai trancando a porta da cozinha, para que a vizinha invejosa não espie, e com seu olho gordo, faça murchar o bolo de milho.  A linguagem de Ana traz o presente porque as tradições que passam de uma geração a outra são atemporais, parte da história sem datas e monumentos, do que permanece vivo por séculos, o sabor de um doce, a madeleine de Proust.

Ana cozinha ao vivo, quer dizer, não se trata aqui se comida requentada, pronta antes da chegada dos felizardos, mas da comida feita na hora, e muitas vezes inventada, como quando junta as mangas e as bananas que acabara de ganhar de alguém que chegara de surpresa, ao frango que ainda pensava como preparar. Outro segredo, à mesa sempre cabe mais um.

Por se repartir entre Minas Gerais e Estados Unidos, a tradição norte americana entrou em sua cozinha, e ela descobre que um país brota de suas receitas culinárias.  Aqui as tradições seriam para Ana Cecília as memórias prospectivas de que falam Deleuze e Guattari. Criamos memórias o tempo todo, e seria interessante para nós nos apropriarmos delas.

Cozinhar é uma coisa muito séria, no sentido que Winnicott atribui ao brincar da criança. Brincar é ludicidade, é abrir horizontes e criar poéticas, é retirar a palavra ou objetos do lugar comum da linguagem para criar o contexto de um poema; ou o de uma receita. Algo que se abre para nós na infância e que carregamos pela vida. Esperemos que sim!

Uma das curiosidades que encontrei na cozinha de Ana, os cogumelos são crus, e precisam ser limpos, picados e preparados, diferentemente dos que compramos enlatados. Uma das histórias _ a filha da autora ganha cogumelos, sendo solicitada para prepará-los. Sem saber o que fazer com eles, lava-os, demoradamente, aguardando inspiração. Quando o namorado deixa o computador onde procurava receitas para os cogumelos, entra na cozinha, surpreende-se ao ver a moça animada, e lhe pergunta: _O que você faz? _ Estou brincando, lhe responde. O que resultou em uma invenção ganhou o nome de “Cassarola de cogumelos à La D.Winnicott”.  Está publicada.






Poema inútil _ traduzido por Norma Segades-Maniás, poeta argentina










                                         Poema inútil

Tradução de:
Norma Segades-Maniás


Ser madre es atávico

es más mar que tierra.



La leche materna, ballenas e delfines,

volcán e magma.



Ser madre es montaña tallada por grietas,

deserto entre uno o dos oasis.



Es uma duna milenária uma isla volcánica

tallada en la lava.



Ser madre es ser un  tanto

y casi nada.







segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ideia pré-formada

  
a estrada trancada,
        leva
do nada ao nada



quinta-feira, 3 de maio de 2012

Meu tio Moysés

(arquivo pessoal, acrílico, grafite e carvão sobre papel)








Médico urologista, eprincipalmente, pessoa boa, contador de histórias fazia todo mundo chorar de rir. Morava no interior, fazendeiro carregando por onde ia  sua maleta de médico cuidava do que podia, febres, infecções, partos. Ficou doente do coração durante cinco ou seis anos, sabia de seu estado, e falava: "Quero morrer vivo".
Um dia antes de sua morte se despediu de mim contando histórias:

"Fiz tantas coisas nesta vida, coloquei no mundo tantos brotinhos bonitos, até você e sua Andrea".

Foi quem fez o parto no qual nasci,  rescém formado, minha mãe, sua irmã, os que me receberam e rodeavam jovens cheios de esperança e sonhos. E Andrea, minha filha mais velha nasceu com ele partejando. Na véspera de sua morte estava magro, risonho e já saudoso, seus olhos brilhavam, era todo amor. Gostava dos ruídos dos bichos e coaxar dos sapos. Entre as heranças que me deixou quero para mim sua generosidade, sua vontade de ajudar, sua alegria. E certamente desejo morrer viva.












MÚSICA E PSICANÁLISE _ por Maria de Lourdes Sekeff



















UNESP
Resumo
Partindo do entendimento de música como processo de subjetivação envolvendo pulsões
e desejo, que somados à técnica e competência adquiridas pelo músico possibilitam
sua auto-realização, levanta-se a hipótese de uma aproximação música x psicanálise. Para
tanto considera-se que ambas envolvem o inconsciente; lidam com emoções ; constituem o
lugar da verdade; são produtos culturais; lêem o homem em sua vida cotidiana e em seu
caminho histórico e possibilitam um espaço de expressão ao sujeito. A despeito de seus
campos impermeabilizarem qualquer ultrapassagem, música e psicanálise supõem sempre
engajamento pessoal e investimento inconsciente, .justificando a aproximação.
O objetivo é confirmar o exercício da música como uma estética de subjetivação, afeta
à política do desejo, com o músico encontrando nessa prática uma função autorealizadora,
tanto quanto comprovar a pleiteada proximidade de ambas..
Fundamentação teórica: A fundamentação teórica é sustentada em Freud e MDMagno
(1986) quando penso em psicanálise; Maynard Solomon (1987), quando abordo o
músico, e Jan LaRue (1989) quando falo de análise musical “interpretativa” (interpretação
como construção de sentido), entre outros.
Metodologia: A metodologia utilizada é a bibliográfica, “interpretativa” e qualitativa.
Resultados: esta pesquisa resultará no livro Música e Psicanálise. Considerações parciais
(como um processo aberto) vêm sendo apresentadas em trabalhos do Grupo TECER,
da Psicologia da USP/ SP, assim como em discussões no Grupo de Pesquisa MÚSICA,
Discurso de uma Cultura e em ensaios:como Características Psicológicas da Música.
ARTE e CULTURA III: estudos transdisciplinares, SP.Annablume/FAPESP, 2004.
Abstract
Leaving of the music understanding as process involving drive (trieb) and desire, that
added to the technique and competence acquired by the musician make possible his selfANPPOM
– Décimo Quinto Congresso/2005 1355
realization, gets up the hypothesis of an approach music x psychoanalysis. For so much is
considered that both involve the unconscious; they work with emotions; they constitute the
place of the truth; they are cultural products; they read the man in his daily life and in his
historical road and they make possible an expression space to the subject. In spite of their
fields they make waterproof any passing, music and psychoanalysis always suppose personal
engagement and unconscious investment, justifying the approach.
The objective is to confirm the exercise of the music as an aesthetics, affects to the politics
of the desire, with the musician finding in that practice a solemnity-enterprising function,
as much as to prove the proximity of both.
The theoretical base is sustained in Freud and MDMagno (1986) when I think about
psychoanalysis; Maynard Solomon (1987), when I think about the musician and Jan LaRue
(1989) when I work the “interpretative” musical analysis (interpretation as sense construction),
among others.
The used methodology is bibliographical, “interpretative” and qualitative.
This research will result in the book Music and Psychoanalysis. Partial considerations
(as na open process) they have been presented in works of the Group “TECER” of the
Psychology of USP/ SP, as well as in discussions in Pesquisa Group “Música: discurso de
uma cultura”, and in articles as “Características Psicológicas da Música” in the book
ARTE e CULTURA III. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2004.
Desde o início do século XX vem se observando um expressivo movimento de aproximação
entre arte e psicanálise, tendo em conta nossa condição de falantes dotados de um
inconsciente que encontra na arte uma atividade de expressão e produção de sentido. Como
ambas são produto da cultura, com a descoberta do inconsciente por Freud e logo após a
Primeira Grande Guerra, a arte faria referências explicitas à psicanálise.
Em nome de um novo cânone estético sustentado na busca de uma expressão que irrompia
do inconsciente, e a despeito de Freud não esconder uma certa antipatia em relação
à arte moderna assumindo que não a compreendia, houve influências mútuas, possibilitando
transformações e criações, como aconteceu com relação a Salvador Dali1 e Max Ernst,
pintores, este último assegurando ter sido fundamental para o seu trabalho a leitura de texANPPOM
– Décimo Quinto Congresso/2005 1356
tos de Freud. Para Freud, para quem a arte era significativa para o entendimento do psiquismo,
essa consideração não se estendia ao expressionismo e surrealismo. Com dúvidas a
respeito dessa estética, ele tinha expressionistas e surrealistas como “loucos furiosos”. Não
obstante, já no final da vida, depois de conhecer Salvador Dali e impressionado com o pintor
catalão, modificou sua opinião. Disse então a Stefan Zweig que lhe apresentara Dali:
[...] até agora sentia-me inclinado a considerar os surrealistas [...] loucos incuráveis
[...]. Mas o jovem espanhol [...] fez-me reconsiderar minha opinião. Na
verdade, seria muito interessante investigar analiticamente, como se chega a compor
um quadro como esse. Do ponto de vista crítico poder-se-ia continuar afirmando
que o conceito de arte desafia toda ampliação, na medida em que a proporção
entre materiais inconscientes e funções pré-conscientes não se mantiverem
dentro de limites definidos2.
Segundo Renato Mezan, o que Freud reprovava na arte moderna era a “desproporção”
entre materiais inconscientes (os fantasmas estruturados na e pela obra) e “funções préconscientes”
que a estética tradicional denomina “forma”. Tanto na poesia quanto no teatro,
romance, pintura, as referências de Freud são particularmente clássicas. E em relação à
música, parece que ele nutria uma certa admiração pelo clássico Mozart.
A verdade é que a psicanálise impressionou a arte do séc. XX, além do que ela mesma
foi im-pressionada pela arte. É relevante o reconhecimento de Freud, afirmando que o método
psicanalítico baseado na livre associação fora inventado a partir de um modelo estético
de criação literária3, com seus preceitos de como os poetas deviam proceder para elaborar
suas criações poéticas.
As reflexões em torno da psicanálise e arte foram aos poucos se tornando mais densas,
respondendo por uma articulação epistemológica que resultou em livros, ensaios e artigos:
Uma Recordação Infantil de Leonardo Da Vinci de Freud, Psicanálise e Cinema de Christian
Metz (1980), Psicanálise e Literatura de Giovanna Bartucci (org. 2001). É a descoberta
do inconsciente animando a referida aproximação!
Não obstante no campo da música esses estudos terem sido relativamente acanhados,
não registrando quaisquer rubricas bibliográficas a não ser um ou outro trabalho isolado
como o do lacaniano MDMagno, A Música(1986)4, questionamentos semelhantes vez por
outra emergiam. Mas Freud não se dedicou a investigações musicais. Aliás, ele considerava
mesmo não possuir gosto musical, como dissera à dra.Jeanne Lampl-de Groot, sua antiga
discípula (abril de 1922).
ANPPOM – Décimo Quinto Congresso/2005 1357
É na intersecção desses dois campos, música e psicanálise, que esta comunicação se
situa, partindo para tanto do entendimento de que ambas são receptáculo daquele lugar de
opacidade intransponível que é o imaginário, parafraseando Christian Metz (1980)5. Ao
mesmo tempo meu entusiasmo por essa temática se exacerbou com a leitura dos livros organizados
por Giovanni Bartucci (2002, 2001, 2000), onde especialistas refletem processos
de subjetivação nos campos da arte, literatura e cinema. Como a música não fora objeto
dessas reflexões, aguçou-se mais o meu interesse.
Para este trabalho retiro a música do umbigo da sala de concertos para o eixo do pensamento
reflexivo, entendendo o produto musical como alteridade (lição de Proust) e autonomia
(lição de Valery)6, e a criação musical como um processo de auto-realização envolvendo
inconsciente, desejo e modos de relação com a pulsão.
Criada, a psicanálise se espraiaria entre artistas e intelectuais, insuflando o surgimento
de movimentos como o dadaísmo, o geometrismo, e “a preocupação pela pureza das formas
e pela funcionalidade do objeto, que conduzirá à Bauhaus”7. Hoje, ao contrário, tem-se
um certo esmaecimento do fascínio exercido pela psicanálise e por sua visão de mundo,
pois estamos todos hipnotizados pelo Projeto Genoma com seu viés de cura, inclusive
mental, num arco que vai da esquizofrenia à distimia.
Naquele instante, entretanto, a articulação entre saber psicanalítico e literatura constituiu
para Freud uma das condições de possibilidade para que ele empreendesse a metodologia
psicanalítica8. Ele se valeu, e quantas vezes! da arte, literatura, mitologia e filosofia
para explicitar seus pressupostos, encontrando aí o caminho para mostrar a dimensão do
que escapa à possibilidade de abordagem pelo universo da lógica e da consciência. Seus
escritos clínicos passaram então a reproduzir, na reconstrução teórica da psicanálise de
um sujeito, a espessura mito-poética que caracteriza o processo psicanalítico9.
Em relação à música, se é certo que esta não lhe suscitou maiores investigações, também
é certa a constatação de que ela sempre se relaciona com o corpo biológico do criador/
receptor e com a “palavra” que o sujeito dessa linguagem articula na construção/ reconstrução
do discurso musical, tendo as múltiplas articulações dessa relação, a função de fazer
“ressoar”. Desse modo a referida aproximação ganha um matiz provocador, particularmente
se se considera que o mesmo Freud que dizia gostar de música, que freqüentava óperas e
dizia admirar Mozart, é o mesmo Freud que tinha sérios desentendimentos com essa arte,
afirmando: A música, sou quase incapaz de fruir [...]; uma disposição racionalista ou talANPPOM
– Décimo Quinto Congresso/2005 1358
vez analítica luta em mim contra a emoção quando não posso saber porque estou comovido,
nem o que é que me pega10.
Mas, ele gostava sim de ópera, o que, aliás, é fácil de entender. Ópera é música com
palavras, é drama musical sustentado por um libreto. Ora, se por um lado o libreto aborda
no geral questões psicológicas: paixão, amor, ódio, traição, sofrimento, tragédia, temas que
sempre ocuparam a atenção de Freud, e se por outro a ópera constitui um espetáculo, é natural
que ele, sensível a questões psicológicas e a impressões visuais, sentisse atração por
esse gênero de música.
Assim, embora sem se voltar especificamente para a investigação da música, ele inferiu
que movimentos constitutivos do discurso musical vão além do significante, possibilitando
“marcas” particulares do sujeito, o que significa dizer que elas trazem alguma coisa
do inconsciente que se presentifica na obra musical, constituindo o estilo próprio do compositor
(e só nesse sentido). Não que a música fale alguma coisa. Não! Música só fala de
música, mas resulta sim, de um ato criativo, impulsionado entre outros por pulsões (de auto-
realização) e desejo.
Tendo em conta que a obra musical sempre inclui uma visão de mundo, que cada época
se caracteriza por uma tendência dominante e que essa tendência ainda hoje se volta
para processos psíquicos e psicológicos, busquei aquele diálogo de intersecção entre música
e psicanálise, não obstante sabendo que ambas mantém projetos diferentes e ambas têm
seus limites. Para tanto considero música como estética de subjetivação que, “pressionando”
o músico à significação, possibilita a auto-realização, ao mesmo tempo em que burla a
lacuna psicológica de não (se) ser plenamente presente em si mesmo.
Somos constituídos pelas linguagens que produzimos e nelas a psicanálise nos “revela”
em múltiplas linhas divergentes. Entretanto, a despeito da psicanálise como processo
terapêutico se sustentar numa troca de palavras, a verdade é que a palavra não constitui a
única forma de fala, a única forma de expressão do eu. O inconsciente encontra sempre um
modo de se manifestar, seja pelo caminho do verbal, do não-verbal e até mesmo pelos dois,
simultaneamente, com o sujeito da fala podendo expressar mais do que pensa e com o ato
psíquico podendo envolver mais de um sentido (como acontece na escuta musical). Como
nesse movimento nada é gratuito, tudo é significante, infere-se que o exercício da linguagem
musical também revela o músico (seu estilo único, e só nesse sentido) e também revela
o receptor (pois música não “fala” só do texto, mas do texto dentro de nós).
ANPPOM – Décimo Quinto Congresso/2005 1359
Ao contrário da lingüística, ciência do simbólico, que objetiva o significado enquanto
tal, psicanálise e música, ciências humanas, objetivam a expressão, diferindo entretanto
em suas perspectivas. Se a psicanálise se debruça sobre o inconsciente e seus processos
primário e secundário, e se à lingüística cabe ênfase no processo secundário, a linguagem
musical, com sua presença marcada de ausências, privilegia o campo da expressão, permeando
ambos os processos, com dominância do processo secundário. Se ainda, no sentido
considerado por Lacan11, o imaginário é oposto ao simbólico mas em permanente imbricação
com este, e se é certo que a psicanálise se relaciona com o desejo, com o imaginário e o
simbólico, também é certo que o exercício da música envolve essa relação, haja vista ser
um processo que utiliza mecanismos e jogos que “regulam” o inconsciente. É assim que a
psicanálise encontra em certa medida um interlocutor na música, pois que jogos do imaginário
e do simbólico se assinalam no trabalho musical.
Marcada por uma produção de sentido e potência criadora singular, a música de algum
modo cruza com a psicanálise, haja vista que o trabalho musical envolve o inconsciente
como foi dito, e este, como diz Lacan, não deixa nenhuma de nossas ações fora de seu
campo. Elementos em comum perpassam o universo das duas: ambas são dotadas de um
caráter subversivo, transformador, e ambas em princípio podem aliviar certas tensões de
nossa psique. Entretanto, diferenças permanecem, em razão de que na linguagem musical
as fantasias ali colocadas não o são sob o olhar da consciência, e assim não se desvanecem,
permanecendo fantasmas, tornando a escritura musical o seu “duplo”, uma fronteira constantemente
deslocada. Compor é desse modo uma atividade inesgotável, ao contrário da
análise que se dá na transferência com uma pessoa real, com a fala ao analista sendo devolvida
ao analisando, objetivando a autonomia do paciente.
Se não em termos da música em si, questionamentos podem ser levantados em torno
da escuta e particularmente da educação musical. Considerando a função normativa e formativa
da educação, o que pode fazer o educador musical, tendo em vista as conquistas
freudianas? São questões a serem investigadas, cabendo sim, pesquisas sobre a temática.
Aliás, em termos de educação, estudos vem sendo retomados desde a década de 70 na
França, com uma metodologia rigorosa que, espera-se, também sejam aplicados à área da
música.
O que torna a aproximação música x psicanálise uma reflexão necessária, é particularmente
o fato de que o investimento em atividades musicais favorece “a constituição de
ANPPOM – Décimo Quinto Congresso/2005 1360
uma dialética da alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura, além do
que, no processo de criação, no trabalho de construção/ escuta de formas sonoras, o músico
encontra o lugar psíquico de constituição de uma estética da subjetividade. Sem que se esqueça
ainda que a psicanálise, como discurso teórico de referência obrigatória no campo
das ciências humanas, e a música como referência obrigatória no campo das práticas afetivo-
sonoras, estimulam o indivíduo a pensar para além da significação. E mais, se se faz
semiologia da música, se existem vários tipos de abordagem musical: acústica, física, histórica,
estilística, porque não se pensar em música e psicanálise? Lacan demonstrou essa
preocupação quando, no Seminário 20, lembrou que “seria preciso, alguma vez, falar da
música; não sei se jamais terei tempo”12 (e não mais o teve).
Com esse entorno, com base no entendimento de que psicanálise é a arte de decifrar
uma verdade e consciente de que a música é, em alguma dimensão, guardiã do inconsciente,
acabei por me voltar à observação freudiana de que artistas são capazes, por meio de
sua arte, de presentificar o inconsciente (como estilo, no caso do compositor, como vivência,
no caso do receptor). A pertinência desse objeto de estudo repousa no fato de que música
e psicanálise lêem o homem em sua vida cotidiana e em seu caminho histórico; ambas
envolvem o inconsciente que, com a instauração da psicanálise ganha um estatuto ontológico,
e ambas lidam com expressões e emoções. Como a música carrega em seus flancos o
não consciente e como a psicanálise teoriza em torno daquilo que escapa ao consciente, a
aproximação se reforça.
Neste trabalho encontro suporte teórico no próprio Freud quando penso em psicanálise,
em Maynard Solomon13 quando penso no músico (Beethoven é o recorte a ser adotado),
e em Jan LaRue14 quando trato de análise musical “interpretativa”, o que pretendo nas
Sonatas para piano de Beethoven.
Com metodologia bibliográfica, “interpretativa” e qualitativa, o trabalho final, um livro,
tratará de Música e Psicanálise (questões epistemológicas referentes à psicanálise e à
música), Características psicológicas da música (aconceitualidade e indução), Sonhos (adentrando-
se nos processos oníricos e fantasias musicais), Processo de criação musical
(abordando também inspiração, imaginação, criatividade), Beethoven, o homem, o músico,
e finalmente No universo da análise (levantamento de perfis, de marcas e traços singulares
utilizados por Beethoven em suas Sonatas para piano), enquanto As Considerações finais
pretendem sublinhar não só a força do psicológico na escrita musical de Beethoven como
ANPPOM – Décimo Quinto Congresso/2005 1361
ratificar o processo de auto-realização, com o músico tendendo a realizar o que existe nele
em germe, a crescer a se completar, embora música sempre resulte em autonomia, alteridade,
falando só dela mesma, música.
O objetivo é confirmar a criação musical como estética de subjetivação, na medida em
que, inscrito nos registros da alteridade e diferença, da insuficiência e incompletude, o músico
sempre encontra, na construção e reconstrução musicais uma função auto-realizadora,
processada em movimentos inventivos que não prescindem da subjetividade. Nesse movimento
ele joga com outros possíveis, transgride o estabelecido, descontrói certezas narcísicas
e reinventa novas articulações que resultam em formas musicais de sentido e feição
única.
Como a psicanálise, a música é produtora de rupturas e descontinuidades na construção
da subjetividade; parte da pulsão para a “descarga” e tende para um alvo (a autorealização);
ambas são afetas a uma “política do desejo”, são produtos culturais e compartilham
um mesmo espírito de época. Como a pulsão é uma força que para tal fim necessita
ser submetida a um trabalho de ligação e simbolização, a música se afigura como um lugar
de possibilidades de ordenação de destinos possíveis, inscrevendo-a no registro da simbolização.
Por fim lembro que toda e qualquer forma de música é sempre um modo de ler, interpretar.
E se na escuta psicanalítica o importante é a função do analista captando no silêncio
da escuta manifestações do inconsciente do analisando com um descomprometimento
com o que este pensa que diz, no caso da música o importante é a construção de sentido
que compositor e receptor estabelecem, comprometidos com a expressão que as formas
sonoras autorizam e legitimam. O que significa dizer que, em ambos os casos, é sempre
possível a percepção de uma “outra fala” ampliando os limites da experiência humana. No
caso do compositor essa outra fala se revela na maneira como ele organiza os sons, como
ele diz o que diz, com a competência da técnica musical (aprendida) somada ao desejo; e no
caso do receptor, à maneira como ele capta os sons musicais, reorganizando-os, reconstruindo-
os, embalado também por seu desejo. Na relação umbilical que compositor/ receptor
estabelecem, na intimidade daquele instante de escuta, algo penetra na construção/ reconstrução,
produzindo ali sua marca, seu traço, sua singularidade.
Embora a obra musical uma vez concluída se assinale como autonomia onde a “intenção”
do compositor não goza de nenhum privilégio e onde o texto não apresenta um sentiANPPOM
– Décimo Quinto Congresso/2005 1362
do único, o que significa dizer que ela sobrevive à subjetividade do seu criador, ainda
assim a vivência musical, tanto quanto o texto (escritura), não deixa de “desvelar” marcas
do compositor (estilo próprio) tanto quanto do “leitor”, possibilitando a percepção da singularidade
de ambos.
E mais, se psicanálise é conhecimento, música também o é. Considerando que o objeto
da música é a própria música, materialidade sonora que se volta para si mesma numa autoreflexibilidade
que acaba por dotá-la de uma potência que se movimenta entre construção e
sensibilidade, a poética que funda esse objeto propicia àquele que o vivencia um mergulho
no ´estranhamento` possibilitando alcançar o conhecimento em razão do saber estético dessa
vivência, lembra a psicanalista Eliane Accioly Fonseca15.
A despeito de toda essa reflexão deixe-se claro que a especificidade de ambos esses
campos se mantém incólume, impermeabilizando qualquer ultrapassagem “territorial”.
Como aproximação não é ultrapassagem, este trabalho acaba por se sustentar, com a subjetividade
possibilitando pelo “descentramento”, um engendramento da criatividade na própria
subjetividade. Como diz Joel Birman em Fantasiando sobre a Sublime Ação:
[...] a concepção da subjetividade formulada no discurso freudiano [...] marcada
pelo “descentramento” [...] encontraria no processo de produção da inquietante
estranheza o seu engendramento e a sua condição de possibilidade [...]. Seria por
este viés descentrado que a criatividade poderia se engendrar na subjetividade
[...]16.
Referências
1 RIVERA, Tânia. Arte e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.22.
2 MEZAN, Renato. Freud, pensador da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.610.
3 FREUD, S. (1920b). Para la prehistoria de la técnica analítica. A.E., v. XVIII, p.257 a 260.
4 MDMagno. A Música. Rio de Janeiro, editora aoutra, 1986.
5 METZ, Christian et al. Psicanálise e Cinema. São Paulo:Global Editora, 1980.
6 BELLEMIN-NÖEL, Jean . Psicanálise e Literatura. São Paulo: Cultrix, 1983, p.77.
7 MEZAN, Renato. Freud, a conquista do proibido. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p.60.
8 SAMPAIO, Camila Pedral. “A incidência da literatura na interpretação psicanalítica”. In Giovanna Bartucci
(Org.). Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro:Imago, 2002, p. 153 a 175.
9 BIRMAN, Birman. “A Escrita em Psicanálise”. In Giovanna Bartucci (Org.), 2001, p.185 a 196.
10In MDMagno, op.cit., p.10.
11 In SOUZA, Alduísio M. de. Uma leitura introdutória a Lacan, exegese de um estilo. Porto Alegre: Artes
Médicas,, 1985.
12 In MDMagno, op.cit, p.14.
13 SOLOMON, Maynard . Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
14 LaRue, Jan. Análisis Del Estilo Musical. Barcelona: Editorial Labor, 1989.
15 FONSECA, Eliane Accioly. Corpo-de-sonho.Arte e Psicanálise. São Paulo: Annablume: 1998, p.13 e 14.
16 BIRMAN, Joel. “Fantasiando sobre a Sublime Ação”. In Bartucci, G.op.cit., 2002, p.127.
Eliane Accioly

terça-feira, 1 de maio de 2012

Pesquisa etimológica partícula de ligação “mas”,pelo Houaiss





liga orações ou períodos com as mesmas propriedades sintáticas, introduzindo frase

que denota basicamente oposição ou restrição ao que foi dito; porém, contudo,

entretanto, todavia

1.1 após negativa, estabelece (ou restabelece) a verdade sobre determinado assunto

Ex.: não o fez, m. gostaria de tê-lo feito

1.2 contrasta uma interpretação

Ex.: era negligente e perdulário, m. tinha um coração de ouro

1.3 depois de simou não, acrescenta comentário para indicar que algo mais precisa ser dito

Exs.: liberdade, sim, m. com limites

obesa, não, m. um tanto gordinha

1.4 indica que se vai passar para outro assunto diferente

Ex.: a alta do dólar é o tema do dia, m. vamos primeiro ao noticiário local

1.5 introduz réplica feita a alguém, para indicar relutância, descrença, protesto

Ex.: —Agradeço, m. não posso aceitar. — Mas como? Vai recusar minha oferta?

1.6 depois de referência a coisas parecidas, menciona o que as torna diferentes uma da outra

liga orações ou períodos com as mesmas propriedades sintáticas, introduzindo frase que denota basicamente oposição ou restrição ao que foi dito; porém, contudo, entretanto, todavia

após negativa, estabelece (ou restabelece) a verdade sobre determinado assunto

Ex.: não o fez, m. gostaria de tê-lo feito

contrasta uma interpretação

Ex.: era negligente e perdulário, m. tinha um coração de ouro

Depois de sim ou não, acrescenta comentário para indicar que algo mais precisa ser dito

Exs.: liberdade, sim, mas. com limites

obesa, não, mas um tanto gordinha

indica que se vai passar para outro assunto diferente

Ex.: a alta do dólar é o tema do dia, mas vamos primeiro ao noticiário local

introduz réplica feita a alguém, para indicar relutância, descrença, protesto

Ex.: — Agradeço, mas não posso aceitar. — Mas como? Vai recusar minha oferta?

depois de referência a coisas parecidas, menciona o que as torna diferentes uma da outra

Não poema para o Mas


Que indecisa  

sobre o muro tal um gato,

indefinida,

adio nosso encontro

Queria tanto te ver, mas...


































quinta-feira, 26 de abril de 2012

Recebi o melhor regalo


(Imagem do acervo pessoal: o quadro de minha primeira coletiva, em 2010)



















Poema de María del Carmen

Siento que tus textos son un regalo del viento
Y su lectura la textura del acercamiento.


Siento que tus textos se visten de espuma
Y su lectura es el aliento de una dotada pluma.


Siento que hoy tengo una escusa
Para brindarte con pausa mi ternura.


Sintiendo el tacto de este abrazo
Que te estoy dando
Con la calma que de él se esta adueñando.