domingo, 12 de julho de 2009

O cotidiano e as pequenas tragédias

Acordou sentindo-se vazia de paixão. Folha em branco sem a alegria por estar viva e ter um dia a sua frente. Um vazio esquisito de rajada no peito e na barriga, vento varrendo a praça. Nem precisa despencar em um buraco sem fundo para vivê-lo, ela era o buraco.

Pensa em Frida Khalo, pintora mexicana que a impressionava pela obra, mas também pela vida trágica. Por que Frida Khalo lhe vinha agora? Talvez porque Frida Khalo sofreu de tudo, lhe parecia, menos de falta de paixão.

Acabara de reler o livro "Frida Kahlo e Diego Rivera", de Isabel Ancântara e Sandra Egnolff. O último quadro de Frida, uma celebração à vida. Natureza morta _ melancias partidas vermelho e verde, contra o fundo azul e branco de céu e nuvens. Em uma das frutas pintadas a artista escreveu "VIVA LA VIDA".

Naquela manhã vazia a mulher envereda pelo diário de Frida, escrito entre 1946 a 54, ano de sua morte.

Em 1953, após ter amputada a perna direita, em consequência do desastre de ônibus sofrido na adolescência, Frida desenha pés e uma perna como uma coluna grega. Da perna saem galhos de roseira, espinhos sem rosas. A pintora escreveu nessa página:

"Pies, para qué los quiero
Si tengo alas pa' volar".

Frida precisava dos pés e das asas, pensa a mulher. Não se pode escolher entre uns e outras. Frida não escolheu. Em muitos sentidos a vida a escolheu e a marcou da desmesura das paixões, amores, arte, dor, alegrias e tragédias.

Como em um sonho se recorda da escolha da pequena sereia que, apaixonada por um humano troca a voz por pernas, para deixar o mar e viver o amor. O que acabaria por matá-la. Sem voz não se pode passar.

Telefona para a filha que, com dor de cabeça, diz que lhe ligaria no dia seguinte. Coloca um lagarto na panela de ferro para cozinhar. Perde os óculos, barata tonta, acha os óculos. Atende o telefone, engano. O buraco permanecia. Almoça e ele não some. Chove lá fora, e dentro uma secura. Precisa sair pagar contas, passar na lavanderia, na casa de consertos, no super mercado, muidezas necessárias. Uma preguiça.

Frida Kahlo dizia das duas tragédias de sua vida _ o desastre de ônibus e Diego Rivera.

No desastre Frida foi empalada pela própria costela, quebrou a bacia e teve mutilada irremediavelmente uma das pernas. A direita. Sofreu abortos, não conseguiu gerar um filho.

Diego foi uma tragédia porque o amou perdida e apaixonadamente. Retribuída e admirada pelo marido como mulher e artista, mas Diego sofria de uma atração incurável por outras mulheres, pelas quais também se apaixonava. O muralista conta em sua auto-biografia que quanto mais amava uma mulher, mais precisava maltratá-la, e que fria foi a maior vítima desse seu desvio de caráter. Rivera e Khalo se separaram. E se casaram por uma segunda vez.

Em um de seus auto-retratos Frida pinta um beija-flor no lugar das sombrancelhas. Suas sobrancelhas perfeitas, negras e espessas lembravam as asas de um pássaro. Ferido.

Após o acidente de ônibus podia apenas ficar deitada, era uma adolescente cheia de vida, e sentia um tédio desesperado, que narrou em cartas para o namorado, Alejandro Gómez Arias. O rapaz foi mandado para a Europa pelos pais, que o quiseram afastar de Frida. O que a salvou foi a idéia da mãe de dar-lhe material para pintar. Frida lia sobre história da arte e pintava, foi auto didata.

Ao deixar o hospital, Frida Khalo recuperou-se na Casa Azul, onde nasceu, e mais tarde em seu casamento voltou a viver ali com Diego. Morreu na casa em que nasceu.

Nos sobre-olhos de alguns auto-retratos a imagem de Diego, como um terceiro olho. Em outros Khalo pinta lágrimas, ou se mostra ferida _ uma corça cravada de flexas com seu rosto humano, sempre as sombracelhas, impressão digital. Retratando seu sofrimento Frida mostra o sofrimento humano.

A chuva fina afia o frio. Troca de roupa, passa um baton, talvez faça as unhas e arrume o cabelo. A pequena mulher mergulhada nas pequenas tragédias cotidianas, faz uma prece ao deus das pequenas coisas. A rajada nas entranhas se torna um ardor quase suportável. Abre a porta e descobre que o vermelho vivo e o verde encontrados em muitos quadros de Frida a acompanham. Um pequeno milagre.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

PINA BAUSCH


As manchetes de quarta feira, 1° de Julho, 2009, do Estadão e da Folha trouxeram a notícia da morte de Pina Bausch. Ao ler os jornais me perguntei:

“Como nunca eu ouvi falar dela?”, triste pelo que vivi como dupla perda: perder Pina Bausch, artista contemporânea tão especial, e principalmente, não ter noticiado sua existência enquanto viveu, até anteontem, no dia 30 de junho. No lugar de cair em depressão por minha alienação, vou tentar contar para vocês minha leitura dos jornais.

Pina Bausch 68 anos, coreógrafa e bailarina era alemã e vivia na cidade de Wuppertal, próxima de Düsseldorf. Ali dirigia sua companhia de dança, “Tranztheater Wuppertal”, (a tradução e dança teatro) fundada no início dos anos 70. Partiu de uma formação no balé clássico, e revolucionou, como coreógrafa, a dança do século XX.

"Não me interesso em como as pessoas se movem, mas o que as movem”. (Ilustrada, Folha de São Paulo, quarta feira, 1° de Julho). Uma de suas frases sempre repetida por ela mesma.

Dizia que seu método não é simples, que fazia perguntas aos seus bailarinos e muitas dessas perguntas ficavam sem respostas. No entanto, sua preocupação estava em saber o que sua companhia estava pensando, em cada momento. As perguntas antecediam cada espetáculo, e nunca um deles seria como o outro. A cada apresentação o grupo se reunia com Pina, discutindo e modificando alguma coisa. As opiniões diferentes, para ela, faziam com que o processo de criação se enriquecesse, como um quebra-cabeças que jamais se aprontaria.

Para ela era fundamental compreender o que as pessoas “estão sentindo”, e como entendem e sentem os próprios corpos. Para ela o Brasil ( e a Bahia em especial) causava fortes impressões, a mistura de culturas e etnias. “As pessoas se tocam, dançam juntas, o clima reduz o receio da proximidade. Nos países frios, ficamos” fechados em casa, o que dificulta a movimentação”. (Caderno 2, quarta feira, 1° de julho de 2009).

No começo de sua carreira não foi compreendida pela maioria, apenas por uma minoria. Muitos bailarinos a recusaram, e muitas vezes as casas de espetáculo ficaram vazias. Pina não desistiu.
Houve uma reviravolta a partir dos anos 90, quando todo bailarino sonhava trabalhar com ela, e as salas ficavam lotadas, os ingressos vendidos com meses de antecedência.

Estou aqui me perguntando, o que em Pina Bausch e sua morte, tanto me mobilizou? Em comum com Pina tenho ser mulher, ter 68 anos e outras preocupações. Por exemplo:

Como artista e terapeuta me preocupa os sentimentos das pessoas. Descubro desde há muito tempo, e a cada dia que sentimentos, percepções, sensações são vividos no corpo. Essa descoberta que, com esforço, qualquer um de nós pode alcançar, transforma o corpo em um instrumento delicado e sensível, cheio de referências para nós, que o habitamos. Nosso corpo, nele e com ele dançamos. Um contato maior com o próprio corpo é um contato maior consigo mesmo. Para mim o sentimento de tristeza é fundamental, e sem tristeza não há vida. Assim como a agressividade e a raiva são fundamentais. Os sentimentos proibidos precisam ser bem vindos, o que importa, é como usá-los. E só os usamos bem quando os incluímos e ao nos conhecermos. Também aprecio e respeito a boa e construtiva irreverência.

Pina Bausch foi irreverente, ousou desmantelar o balé clássico, para criar uma linguagem onde o corpo é vivo, e não técnico. Em sua arte ela se preocupou com a situação da mulher, e para ela a dor não era proibida, ela a incluía em seus espetáculos. Nos últimos tempos havia uma diferença substancial entre uma fase intensa e deprimente, dos anos 70 e 80, para uma fase mais recente, vista como “superficial e alegre”. A isto Bausch respondia diretamente:

“A questão é do que precisamos hoje. Estamos num momento terrível tenebroso, sério e assustador. Então, procuro dar um pouco de balanço, compensação para tudo isso”. (Caderno 2) Penso que ela está absolutamente correta: vivendo nossas tristezas, podemos viver nossas alegrias, e precisamos muito delas. (Coloco “ela está”, nas linhas acima, porque alguém que viveu como Pina viveu, construindo a obra que nos legou, permanecerá viva, para além da morte).

Por ser humana, no entanto, sou paradoxal. A morte real de Pina Bausch trouxe para mim a dor de perder uma pessoa com a qual me recém descobri cheia de admiração, calor, amor e afinidades.

Convido-os a entrar nos sites da Folha e do Estadão, e ler as reportagens do dia 1° de Julho.

Gostaria muito que pudéssemos dialogar acerca do acontecimento Pina Bausch, e também que me ajudassem a conhecê-la melhor.